“A Igreja venerou sempre as Divinas Escrituras (Bíblia) como venera o próprio Corpo do Senhor (Eucaristia),
não deixando jamais, sobretudo na Sagrada Liturgia,
de tomar e distribuir aos fiéis o pão da vida,
quer da mesa da Palavra de Deus quer da do Corpo de Cristo”
CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA DEI VERBUM SOBRE A REVELAÇÃO DIVINA, 21
Domingo, 3 de outubro de 2010 - 27º Domingo do Tempo Comum
Primeira leitura: Habacuc 1,2-3; 2,2-4 O justo viverá por sua fé.
Salmo responsorial: 94, 1-2.6-9 Não fecheis o coração; ouvi vosso Deus!
Segunda leitura: 2Timóteo 1, 6-8.13-14 Não te envergonhes de dar testemunho de Nosso Senhor.
Evangelho: Lucas 17, 5-10 Se vós tivésseis fé!
O profeta Habacuc nos coloca no contexto do diálogo entre o profeta e Deus, onde o primeiro toma a iniciativa e pergunta a Deus onde está a raiz do mal e do sofrimento que o rodeia. A injustiça, a violência e a desigualdade parecem converter-se na única forma de viver da sociedade em muitos momentos, não somente na história do povo de Deus, mas também na história da humanidade.
A queixa do profeta é clara: não há justiça; vive-se na violação sistemática dos direitos humanos básicos provocados pela anomia e confusão de seu tempo. Contudo, a resposta do Senhor, diante da injustiça, está na resistência pacífica e na esperança do ser humano nele. Na segunda carta a Timóteo o autor nos apresenta a origem do ser apóstolo do Senhor: do plano divino da salvação de Deus.
Os crentes hoje somos convidados a tomar consciência de que temos recebido do Senhor o dom da fé, da fortaleza e da caridade; portanto, este dom recebido demanda uma resposta oportuna. Diante da situação tão complexa, adversa e confusa de nossa situação mundial, os carismas do Espírito do ressuscitado servem para nos orientar à comunidade humana com valentia e dar testemunho da libertação e salvação do Senhor. Os referidos dons, recebidos da graça de Deus, são também tarefa humana e necessitam ser cultivados e incrementados constantemente para evitar cair no absurdo e na desesperança.
No texto de Lucas vemos os discípulos, conscientes de sua pouca fé, de sua incapacidade para dar sua adesão plena a Jesus e à sua mensagem. Por isso lhe pedem que aumente sua fé. Jesus constata na realidade que possuem uma fé menor que um grão de mostarda, semente do tamanho de uma cabeça de alfinete.
Não dão a mínima, pois com tão pequena quantidade de fé bastaria para fazer o impossível: arrancar pelas raízes, com uma única ordem, a uma amoreira e atirá-la ao mar. Este mínimo de fé é suficiente para colocar à disposição do discípulo o poder de Deus. A amoreira, como a figueira, são símbolos da fecundidade em Israel.
A figueira com muitas folhas, de bela aparência, porém sem figos, é símbolo da esterilidade da instituição judaica, que não dá sua adesão a Jesus. Os discípulos têm fé, porém pouca. Com fé, como um grão de mostarda, estariam em condições de “arrancar a amoreira (símbolo de Israel) e atirá-la ao mar”.
Com esta linguagem figurada, Jesus indica qual é a tarefa do discípulo: romper com a instituição judaica, baseada no cumprimento da lei e eliminar o sistema de injustiça que representa essa instituição com seu templo-cova de bandidos à frente. Com um mínimo de fé bastaria para mudar o sistema.
Olho ao meu redor e penso que algo não funciona. Tantos cristãos, tantos católicos, tantos colégios religiosos... E me pergunto: Quantos crentes? Os cristãos têm fé. Os sacerdotes e religiosos, os bispos possuem fé? Nós temos fé? Ou temos uma seria descrença, um longo e complicado credo que recitamos de memória e que pouco diz respeito à vida?
As palavras de Jesus continuam ressoando hoje: “Se tivésseis fé como um grão de mostarda....”. Ou o que dá no mesmo: se seguísseis o meu caminho, se vivêsseis segundo o evangelho, teríeis a força de Deus para mudar o sistema.
Sigo olhando ao meu redor e vejo uma igreja apegada a seus privilégios, que se atrela aos poderes fáticos, que muitos países dependem economicamente do estado, capaz de dar força ao poder político e vencer, identificada com freqüência com a direita ou o centro, defensora extrema de seu estatuto de religião verdadeira e prioritária.
Volto-me para o evangelho e releio suas páginas: “Vende tudo o que tens e reparte-o aos pobres, que Deus será tua riqueza, e depois segue-me” (Lc 18,22). “As raposas têm tocas e os pássaros ninhos, porém este homem não tem onde reclinar a cabeça” (Lc 9,58). “Não andeis agoniados pensando com o que ireis comer, nem pelo corpo, pensando com que vestir” (Lc 12,22). “Os reis das nações as dominam e os que exercem o poder se fazem chamar benfeitores. Porém, entre vós nada disso deve acontecer; ao contrário, os maior entre vós iguale-se ao mais jovem e que dirige ao que serve” (Lc 22,25-26).
Pobres, livres, sem segurança, sem poder, como Jesus. Somente têm fé quem adere a este estilo de vida evangélico. Quem não adere, pode possuir crenças que para quase nada servem. E assim não se pode mudar nem o sistema religioso nem sequer o mundano. Talvez tenhamos que reconhecer que somos “servos inúteis”, pois não andamos conforme a nossa fé, e sim no cumprimento das obras da lei, como os fariseus.
COMENTÁRIO CRÍTICO
A palavra “fé” é polissêmica, tem significados múltiplos, que dependem do contexto de seu uso. No texto do evangelho de hoje fica claro que aparece como sinônimo de coragem, decisão, convicção e entrega e “essa fé” é a que move montanhas ou translada amoreiras, não necessariamente com uma eficácia “sobrenatural”, mas às vezes simplesmente psicológica.
Não se deve confundir esse significado da palavra “fé” com aquele outro que nos foi inculcado pelo catecismo infantil: “Fé é crer no que não se vê”, significado dominante no imaginário cristão tradicional. Confundir estes significados da palavra nos leva a pensar que Deus nos estaria pedindo como prova máxima em nossa vida, seria uma espécie de “fideismo”, um crer ou dar por certo prioritariamente o que diz nossa religião (doutrina, catecismo, magistério).
Obviamente, esta confusão, tão freqüente, é uma distorção do cristianismo e da própria religião, no que tem de mais básico. Deus pode brincar de esconder com a humanidade? É que, supostamente, a “prova máxima” exigida por Deus ao ser humano nesta vida, seria acreditar em sua existência, uma existência deliberadamente auto-ocultada para provar-nos?
Essa é, definitivamente, a síntese da concepção cristã da existência, a que vivemos durante quase dois milênios. E ainda está presente no imaginário de muitas pessoas, pessoas que se manifestem como cristãs, e pessoas que não agüentaram a sensação de incredulidade que esta visão clássica lhes suscita.
É hora de matizar bem o sentido das palavras chaves do evangelho e que a Bíblia em geral nos apresenta. Não podemos ler os textos entendendo-os como se entendia em pleno velho paradigma que tudo era entendido como obra de Deus que teria decidido criar o ser humano nesta vida pedindo-lhe caprichosamente para “crer no que não se vê”.
Este “grande relato cristão”, inclusive essa imagem de Deus, não resistem à qualidade crítica de nossa visão de hoje. Não podemos crer em um Deus assim. E não podemos crer (é impossível acreditar, ininteligível e, inclusive, inverossímil), não podemos aceitar uma tal cosmovisão cristã. Deus não age de esconde-esconde, nem nos obriga a brincar esse jogo.
É do agrado de Deus que levemos a serio a nossa vida, e que busquemos com afinco a verdade, e que nos apoiemos na ciência, e façamos continuamente hipóteses (previsões até que encontremos outras melhores e mais plausíveis), sem aceitar pensar que no centro do significado de nossa existência humana fossemos chamados simplesmente a “crer no que não se vê”, cega e infantilmente. Fonte: Portal Claret/SP
A atitude de fé à qual Jesus nos chama hoje é a da coragem de combater a obscuridade, a valentia de buscar a verdade e a voltar a assumir, “visto o que podemos ver”, uma decisão interpretativa sobre o mundo e o que não se pode ver. Tudo que é contrario a isso não passa de uma atitude infantil, cega, covarde, alienante.
Quando nos recomenda uma atitude de fé, o que Jesus nos pede é uma atitude de fé corajosa e valente, ou o atrevimento de tomar uma decisão interpretativa da existência, a partir do pouco ou muito que dão de si nossas atuais condições de conhecimento. Fonte: Portal Claret-SP.